Exmo. Senhor
Presidente da Junta de
Freguesia de Campolide
Rua de Campolide, 24-B
1070-036 Lisboa
Lisboa, 8 de abril de 2016
Sua referência Sua comunicação Nossa referência
Ofício n.º 489/2015_cADM 19-11-2015 S-PdJ/2016/3052
Q/1477/2015 (UT1)
Recomendação n.º 1/A/2016
(alínea a), do n.º 1 do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)
Assunto: procedimento de partilha de decisão – referendo – alteração de pavimento
Nos termos e para os efeitos do disposto da alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, e em face da motivação seguidamente apresentada, recomendo à Junta de Freguesia presidida V. Exa que:
Se abstenha de atribuir qualquer valor jurídico ao resultado do denominado «Processo de Partilha de Decisão», que decorreu em 4 e 5 de março de 2015, com vista à alteração da pavimentação de algumas vias de trânsito pedonal na freguesia de Campolide, por ser nulo o ato, nos termos e com os efeitos previstos do n.º 1, do artigo 133.º e 134.º do Código de Procedimento Administrativo , por preterição de formalidades essenciais previstas no Regime Jurídico do Referendo Local , nomeadamente por ter sido preterida a fiscalização prévia do Tribunal Constitucional e da Assembleia Municipal, e por não terem sido respeitadas garantias essenciais de isenção e imparcialidade (designadamente quanto à constituição e funcionamento das mesas de voto).
Bem assim, se abstenha a Junta de Freguesia de Campolide de iniciativas com características semelhantes, simulando um referendo popular local, mas sem observância das prescrições legalmente aplicáveis.
Queira V. Exa. atender às motivações que se apresentam, no termo da apreciação das questões controvertidas, a qual compreendeu, como não poderia deixar de ser, as explicações prestadas por V. Exa, em observância do princípio do contraditório (artigo 34.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro).
§1.º Da queixa
Foi-me apresentada uma queixa em que se contestava o procedimento de consulta à população recenseada na freguesia de Campolide, promovido pela Junta de Freguesia de Campolide, a respeito de uma alteração dos passeios de algumas vias de trânsito, induzindo-se os eleitores a manifestarem o seu apoio à substituição da denominada calçada portuguesa por outro tipo de passeio.
Entendia-se que o procedimento não havia observado os requisitos legais previs-tos na Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro.
Por um lado, as perguntas revelavam-se parcialmente enunciadas.
Por outro lado, não tinham sido submetidas à fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional.
Por fim, a iniciativa referendo não tinha sequer sido deliberada pela Assembleia de Freguesia.
§2.º Do contraditório
Em abono da legalidade do ato, V. Exa. valeu-se do princípio da autonomia local, do princípio da descentralização democrática da administração pública e da posição privilegiada das juntas de freguesia como interlocutoras dos eleitores de Campolide.
Considerou que «neste âmbito foi adotado um procedimento informal de consul-ta à população procurando-se com o referido, o levantamento das necessidades da popula-ção da Freguesia, tendo em vista encontrar as soluções mais adequadas para os seus ansei-os».
Adiantou ter-se tratado de uma mera consulta sem carácter vinculativo, ao abrigo do princípio da autonomia local, consignado no n.º 1 do artigo 235.º, n.º 1 e 2 do artigo 242.º e n.º 1 e 2 do 243.º da Constituição.
Invocou ainda a Carta Europeia de Autonomia Local ao estipular, nomeadamen-te, o direito de os cidadãos participarem na gestão dos assuntos públicos, devendo as au-tarquias locais beneficiar de uma ampla autonomia quanto às competências, às modalidades do seu exercício e aos meios necessários ao cumprimento da sua missão.
Reforçou esta linha de argumentação, afirmando que só há poder local quando as autarquias são verdadeiramente autónomas e têm amplo grau de autonomia administrativa e financeira.
Por fim, referiu-se a uma crise na democracia que se refletiria numa crise de par-ticipação.
Entendeu desviar-se do procedimento próprio do referendo local por se tratar de «um procedimento excessivamente onerado em termos burocráticos que a estrutura da Junta de Freguesia de Campolide não poderia suportar, devido aos parcos recursos finan-ceiros e humanos de que dispõe».
As numerosas quedas e acidentes de pessoas por deficiente estado do pavimento justificariam porém um investimento de vulto, pois a calçada portuguesa não satisfaz os requisitos de mobilidade e acessibilidade próprios do Decreto-lei n.º 163/2006, de 8 de agosto.
§3.º Análise da situação reclamada
I – Enquadramento legal
A Constituição da República Portuguesa consagra no artigo 48.º o direito de to-dos os cidadãos a tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do País, bem como o direito de ser esclarecidos objetivamente sobre atos do Estado e demais enti-dades públicas.
O referendo local encontra-se previsto no artigo 240.º da Constituição e regulado na Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro.
A Constituição e a lei pretendem, ao regularem os procedimentos participativos dos cidadãos, com as suas convicções e sugestões, evitar condicionamentos da opinião pública, por forma a imputar-lhe a responsabilidade pela adoção de decisões controvertidas que o decisor político não quer assumir.
A iniciativa do referendo local por parte das freguesias não é uma novidade, nem uma impossibilidade. A freguesia de Milheirós de Poiares, por exemplo, submeteu a refe-rendo a integração da freguesia no município de S. João da Madeira e a freguesia de Serra-lheis submeteu a referendo a construção de um campo de jogos.
II – Dos termos em que decorreu o procedimento
No Boletim da Junta de Freguesia de Campolide, de fevereiro de 2015, anunciou-se esta iniciativa como «consulta popular».
Na capa do mesmo boletim pode ler-se que «a JFC organizou um debate e uma consulta popular». No editorial, assinado por V. Exa., é afirmado que «decidimos, então, lançar uma nova Consulta Popular».
No mesmo Boletim também se denomina a iniciativa como «referendo», desig-nadamente no cabeçalho da reportagem denominada «Tradição ou Segurança».
E no conteúdo desta reportagem (página 4) utilizam-se as duas denominações na mesma frase «consulta popular invulgar, pois não é comum este tipo de referendo à popu-lação».
Por seu turno, o regulamento aprovado para o efeito denomina a iniciativa como «Processo de Partilha de Decisão».
Esta volatilidade de denominação da iniciativa constitui uma fonte de equívocos.
Quanto aos termos formais em que se desenvolveu a iniciativa, importa ter pre-sente que os poderes públicos não dispõem de liberdade para configurar consultas à popu-lação como se não estivessem subordinados ao princípio da legalidade. E contra este prin-cípio de nada vale invocar a autonomia local ou a descentralização democrática.
Com efeito, estes princípios da organização administrativa encontram o seu fun-damento e limite no princípio da legalidade.
Por conseguinte, ou a iniciativa preenchia os pressupostos de uma participação popular regulada na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, ou os de um referendo local nos termos da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto.
Analisada a iniciativa quanto ao seu enquadramento na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, verifica-se que não houve nenhum estudo ou projeto previamente elaborados su-jeito a consulta pública, nem a participação dos interessados decorreu em conformidade com este regime jurídico.
No procedimento de participação popular não há sufrágio, ao contrário do que tem lugar nos referendos. O que se pretende é recolher observações ou sugestões dos inte-ressados. Por esta razão, não se apresenta nenhuma pergunta, ao contrário do que sucedeu com a iniciativa promovida pela Junta de Freguesia de Campolide.
Por outro lado, no procedimento de participação popular, os sujeitos habilitados a participar no procedimento não se confinam aos eleitores recenseados na freguesia, como no referendo local. A participação é aberta a todos os cidadãos interessados e às cole-tividades que se propõem defender os chamados interesses difusos que possam vir a ser afetados por aquelas decisões.
O procedimento adotado pela Junta de Freguesia destinou-se aos eleitores recen-seados na freguesia e não a todos os possíveis interessados.
Além de o procedimento não se enquadrar no procedimento de participação popular regulado pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, nem no objetivo prosseguido, nem no colégio convocado, foram atropeladas formalidades essenciais.
Com efeito, quer a publicidade do procedimento, nos termos previstos no artigo 5.º deste diploma (publicitação em jornais diários e regionais) quer a disponibilização dos estudos e outros elementos instrutórios das obras sob consulta, conforme resulta do artigo 6.º, não foram asseguradas. Nem parece ter sido observado o prazo de cinco dias para os interessados comunicarem a pretensão de serem ouvidos oralmente ou apresentarem as suas observações por escrito.
Assim, a iniciativa adotada pela Junta de Freguesia não observou, absolutamente, o procedimento de consulta popular previsto na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.
E como veremos em seguida, também não observou o Regime Jurídico do Refe-rendo Local, aprovado pela Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, não obstante dele se ter aproximado deliberadamente na aparência.
Embora submetida aos eleitores uma pergunta, cujas respostas seriam o desiderato deste instrumento usado, a verdade é que, nos termos do artigo 24.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, a deliberação sobre a realização do referendo competiria, não à Junta de Freguesia de Campolide, mas à Assembleia de Freguesia.
Além do mais, nos termos do artigo 25.º, o presidente do órgão deliberativo de-veria ter submetido a deliberação ao Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade. Nenhum destes requisitos foi observado.
Note-se que o Regulamento de Processo de Partilha da Decisão, aprovado pela Junta de Freguesia de Campolide, reproduz algumas normas da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto. Veja-se que o artigo 3.º daquele regulamento transcreve quase na íntegra o artigo 7.º deste diploma, determinando que o processo não poderá «comportar mais de três perguntas (…) as perguntas são formuladas com objetividade, clareza e precisão (…) as perguntas não podem ser precedidas de quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas».
De notar que já foi omitida a transcrição do artigo 7.º da Lei n.º 4/2000, de 24 de agosto, quando este determina que as respostas devem ser «de sim ou não».
Quanto à eficácia do procedimento determinou-se no regulamento que os resul-tados do processo de partilha da decisão não seriam vinculativos, cabendo aos órgãos au-tárquicos avaliar os resultados do processo de partilha de decisão e optar pela melhor so-lução para os cidadãos da freguesia (cfr. artigo 8.º), contrariamente ao prescrito no Regime Jurídico do Referendo Local onde se determina que o resultado do referendo vincula os órgãos autárquicos (cf. artigo 219.º) ao ponto de a inobservância do mesmo pelas assem-bleias autárquicas implicar a sua dissolução, nos termos da lei (cfr. artigo 220.º).
Mais se determina no artigo 221.º que, se da votação resultar resposta que impli-que a produção de um ato pela autarquia sobre a questão ou questões submetidas a refe-rendo, o órgão competente aprovará o ato de sentido correspondente no prazo de 60 dias. Também esta regra não foi adotada pelo Regulamento do Processo de Partilha de Decisão.
Ora, não é possível em democracia aplicar umas e desaplicar outras normas nos procedimentos de intervenção política dos eleitores.
Ao reconhecer direito de sufrágio aos cidadãos recenseados na freguesia de Campolide, tendo por base os cadernos eleitorais disponíveis no Sistema de Informação e Gestão do Recenseamento Eleitoral (cf. artigo 4.º do Regulamento), cria-se a convicção legítima de estar em curso um verdadeiro referendo.
De resto, nos artigos 4.º e 5.º do Regulamento transcreve-se o teor dos artigos 35.º e 36.º da citada Lei Orgânica quanto ao princípio geral do direito à participação e às incapacidades que impedem o gozo do direito à participação.
Foram ainda constituídas mesas de voto (cf. artigo 7.º do Regulamento) mas sem critérios quanto à nomeação dos membros, constituição das mesas, isenção ou fiscalização do seu funcionamento.
Insisto. Aplicaram-se e desaplicaram-se as disposições próprias do referendo sem que se alcancem os critérios nem o motivo.
Não é suposto utilizar-se uma aproximação ao instituto democrático do referendo e, do mesmo passo, desvirtuá-lo por utilização de um outro nomen iuris, furtando-se ao cumprimento dos requisitos formais e materiais legalmente exigidos, designadamente a sua vinculatividade, os meios de fiscalização (nomeadamente, pelo Tribunal Constitucional pela Assembleia de Freguesia) as garantias de isenção (nomeadamente quando olhamos para a constituição dos membros da mesa de assembleia de voto quanto aos termos, processo e requisitos de designação dos membros da mesa, assim como da observância das incompatibilidades legalmente previstas) introduzindo variantes à margem da lei.
A não submissão da iniciativa promovida pela Junta de Freguesia ao Regime Ju-rídico do Referendo Local permite ainda a não sujeição da mesma às disposições aplicáveis ao ilícito referendário (artigos 167.º e seguintes), nomeadamente o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social.
III – Da pergunta sufragada
A pergunta sujeita a votação foi a seguinte:
«Na sequência do protocolo de delegação de competências em que a Câmara Municipal de Lisboa delega na Junta de Freguesia de Campolide a competência de recuperação da pavi-mentação de algumas vias de trânsito pedonal da Freguesia de Campolide, qual a sua pre-ferência de tipo de pavimento a colocar.
Hipóteses:
Calçada, tradicional, à semelhança do que já existe
Outro tipo de pavimento contínuo, mais moderno e seguro.»
Na instrução do processo solicitou-se à Junta de Freguesia de Campolide o envio do designado «protocolo de delegação de competências», de modo a verificar se a alteração da calçada estava sequer nas atribuições da freguesia.
Após alguma insistência, foi-nos remetido o designado «Contrato de Delegação de Competências na Junta de Freguesia no Âmbito da Acessibilidade Pedonal», outorgado entre o município de Lisboa e a Junta de Freguesia de Campolide.
O principal problema observado não está na designação «protocolo» ou «contra-to», mas na data em que este foi celebrado.
Como já foi mencionado, a designada consulta à população ocorreu em 4 e 5 de março de 2015. A delegação apenas em 23 de dezembro de 2015.
A consulta antecipou-se a uma delegação de tarefas na freguesia pelo município que podia muito bem nunca chegar a ser deliberada.
Mais grave é o facto de a população ter sido erroneamente informada, pois na pergunta sujeita a consulta indiciava-se que o designado «protocolo de delegação de com-petências» já tinha sido outorgado, afirmando-se «Na sequência do protocolo de delegação de competências em que a Câmara Municipal de Lisboa delega na Junta de Freguesia de Campolide a competência de recuperação da pavimentação de algumas vias de trânsito pedonal».
Também no «Regulamento de Processo de Partilha de Decisão da Junta de Fre-guesia de Campolide» se alude ao «processo de partilha de decisão (…) a realizar no âmbito das competências que lhe foram delegadas por Protocolo celebrado entre a Câmara Muni-cipal e a Junta de Freguesia de Campolide».
E no artigo 3.º deste regulamento determina-se que «a pergunta (…) deverá reme-ter para o Protocolo de delegação de competências celebrado entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Junta de Freguesia de Campolide para que esta intervencione as ruas de Cam-polide».
Da parte da Junta de Freguesia foi prestada uma falsa informação à população.
E não se encontrando delegadas as competências, ao realizar a consulta, a Junta de Freguesia arrogou-se a uma atribuição (e às competências orgânicas decorrentes) que permanecia inteiramente na pessoa coletiva municipal, violando o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Referendo Local.
Ao tempo, uma deliberação sobre esta matéria mostrava-se nula por incompe-tência absoluta. Aquela que se deve, não à simples infração de normas de competência entre órgãos de uma mesma pessoa coletiva pública, mas a incompetência primária – por falta de atribuições. Nos termos da alínea c), do artigo 12.° da Lei n.º 56/2012, de 8 de novembro, que aprovou a reorganização administrativa de Lisboa, as juntas de freguesia apenas têm competência para «manter e conservar pavimentos pedonais». Não obstante o facto de essa lei se mostrar frágil no que toca à precisão terminológica, estamos claramente no campo das atribuições.
E sem a atribuição à freguesia, o seu órgão executivo não dispõe de poderes para alterar o tipo de pavimento porque o contexto cultural e histórico da calçada em pedra não se circunscreve a Campolide, identificando-se com toda a cidade de Lisboa.
Compreende-se, pois, que as atribuições neste domínio se encontrem confiadas aos municípios. Trata-se de garantir a uniformidade dos passeios como elemento de iden-tidade e de continuidade nos arruamentos confinantes com outras freguesias.
Por seu turno, na alínea ff), do n.º 1 do artigo 16.°, da Lei n.° 75/2013, de 12 de setembro, determina-se, em consonância, que compete às juntas de freguesia proceder à manutenção e conservação de caminhos, armamentos e pavimentos pedonais. Quer isto dizer que já não lhes cumpre proceder à sua alteração.
Quanto ao restante teor da pergunta efetuada na designada consulta popular considero que a mesma não reúne os requisitos de objetividade, clareza e precisão legal-mente exigidos.
Primeiro, a pergunta não obedece aos critérios enunciados no n.º 2 do artigo 7.º do Regime Jurídico do Referendo Local, na parte em que dispõe que as perguntas são formuladas «(…) para respostas de sim ou não (…)».
Com efeito, o teor da segunda hipótese – Outro tipo de pavimento contínuo, mais moderno e seguro» – não está formulado para respostas de sim ou não, comportando várias hipóteses alternativas distintas da calçada, tradicional.
A resposta de sim à segunda hipótese da pergunta não permite apurar com qual (ou quais) das várias hipóteses subjacentes à pergunta o eleitor concorda em relação a cada uma das hipóteses distintas.
Com efeito, a segunda pergunta pode ser subdividida em outras três, ou seja:
i) Prefere outro tipo de pavimento contínuo?
ii) Prefere outro tipo de pavimento mais moderno?
iii) Prefere outro tipo de pavimento mais seguro?
A hipótese, formulada num todo, com estes três requisitos, parece induzir sempre à exclusão da calçada portuguesa. Com efeito, o eleitor pode, por exemplo, não pretender um piso contínuo embora perfilhe a opção de pisos mais seguros e modernos. E não podendo excluir da segunda hipótese a opção de pavimento contínuo optará pela resposta positiva à hipótese da calçada portuguesa.
De resto, haverá pisos modernos mas que não são mais seguros ou vice-versa.
A pergunta assim formulada não permitia que o aparente referendo viesse a sal-dar-se em uma resposta concludente ou inequívoca quanto à real vontade do eleitorado chamado a pronunciar-se .
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional , considera-se «es-tarmos perante três questões que não têm entre si qualquer relação de dependência, po-dendo subsistir cada uma delas e fazer sentido sem a(s) outra(s), sem que, portanto, a con-cordância ou não concordância do cidadão eleitor quanto a uma das questões se repercuta na concordância ou não concordância quanto às demais».
A interpretação da pergunta no sentido de nela se conterem três questões autó-nomas compromete a exigência constitucional e legal de que seja formulada para uma res-posta de sim ou de não.
Seguindo a mesma jurisprudência, podemos afirmar que «o princípio da bipolari-dade ou dilematicidade impõe que a pergunta, devendo ser respondida por uma afirmativa ou uma negativa, não abra espaço para soluções matizadas (…) por adesão parcial ou con-dicionada a uma das duas soluções opostas propostas (…) cada uma das questões, por si só, pode conduzir quer a uma resposta de sim quer a uma resposta de não, colocando o cidadão eleitor perante a dificuldade de saber como votar quando a resposta não for a mesma para todas as questões que lhe são postas (….) No fundo, o que se pretende assegurar com uma formulação bipolar ou dilemática é que o sentido do voto coincida, em toda a sua extensão, com o conteúdo desse mesmo voto».
E a pergunta tão-pouco satisfaz o requisito da precisão, pois não permite a com-preensão de qual a alteração a introduzir nos passeios de Campolide .
Se a primeira alternativa se limita a um elemento notório «Calçada, tradicional, à semelhança do que já existe», a segunda deixa uma amplíssima margem de incerteza no tipo de piso a adotar.
Com efeito, a pergunta é formulada sem indicação concreta do tipo de pavimento a adotar, apenas se referindo que é «contínuo, mais moderno e seguro».
O princípio da transparência exigiria sempre uma informação clara e precisa ao público, que só poderá opinar (e tomar responsabilidade sobre as suas opções) perante a análise de todos os factos.
E, note-se, poderia ter sido adotada terminologia técnica mais objetiva, como por exemplo, a que veio ser adotada pela Câmara Municipal de Lisboa para seleção do material de revestimento do percurso pedonal, no documento denominado «Modelo de Revestimento de Passeios»:
a) Resistência Inicial ao Escorregamento;
b) Resistência ao Polimento;
c) Regularidade;
d) Refletância;
e) Irradiação de calor;
f) Facilidade de Construção;
g) Adequação a superfícies empenadas;
h) Facilidade em Remates, Recortes e Reparações;
i) Facilidade de Limpeza.
Ainda de acordo com o n.° 2 do artigo 7.° da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, as perguntas devem ser formuladas «sem sugerirem direta ou indiretamente o sen-tido das respostas».
Ora, a segunda hipótese da pergunta efetuada pela Junta de Freguesia qualifica o tipo de piso, com adjetivos qualitativos no grau comparativo, sugerindo o sentido da res-posta a quem privilegia estas qualidades ou, pelo contrário, as subestima: «pavimento con-tínuo, mais moderno e seguro.» Esta redação influencia certamente o sentido da resposta contra todos os cuidados que o regime do referendo impõe, de modo a impedir interven-ções plebiscitárias e incompatíveis com o princípio democrático.
O Tribunal Constitucional considera que o princípio da objetividade implica a proibição de juízos de valor implícitos aos quesitos ou sugestões sobre o sentido das res-postas.
Não pode a pergunta conter «quaisquer referências valorativas, de juízos de valor, induções, conclusões ou considerações subjetivas, que pressionem ou induzam o eleitor a votar num determinado sentido.»
E, por fim, também por estas razões, a pergunta escolhida pela Junta de Freguesia de Campolide também não respeita o requisito da objetividade na medida em que contém juízos de valor e considerações subjetivas.
§4.º Conclusões
A) A iniciativa de consulta da população por parte da Junta de Freguesia de Campo-lide, cumprida em 4 e 5 de março de 2015, constituiu mera simulação de um refe-rendo popular sem observar prescrições legais essenciais como sejam as relativas à isenção, objetividade e fiscalização do procedimento, nem as relativas ao direito sancionatório aplicável, razão pela qual é nulo;
B) A Junta de Freguesia de Campolide deve abster-se de extrair qualquer conse-quência do resultado da iniciativa e abster-se ainda de adotar iniciativas com tra-mitação idêntica.
C) A população deve ser informada acerca do equívoco por meio do boletim que anunciou a iniciativa descrita.
Dignar-se-á V. Exa, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 38.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, transmitir-me, dentro de 60 dias, a posição que vier a assumir.
Queira aceitar, Senhor Presidente da Junta de Freguesia, os meus melhores cum-primentos,
O Provedor de Justiça,
(José de Faria Costa)