A Sua Excelência,

O Presidente da Assembleia da República

Palácio de São Bento

1249-068 Lisboa

 

– por protocolo –

 

 

 

Lisboa, 7 de junho de 2016

 

Assunto: Exercício de atividades que envolvem um contacto habitual com menores. Obrigação de apresentação anual do certificado de registo criminal            

 

 

Recomendação n.º 2/B/2016

(alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da

Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)

 

 

Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, recomendo à Assembleia da República que:

Seja promovida a alteração do n.º 2, do artigo 2.º, da Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, no sentido de substituir o dever de apresentação anual do certificado de registo criminal por meios de comunicação da condenação pela prática de crimes contra a autodeterminação e a liberdade sexual de menores, aptos a garantir que as entidades, responsáveis pelo desenvolvimento de atividades que impliquem um contacto regular com crianças, podem tomar tempestivo conhecimento das decisões judiciais relevantes de modo mais célere, mais seguro e menos oneroso para os trabalhadores e para os serviços de identificação criminal.

A presente Recomendação resulta da apreciação de diversas queixas apresentadas ao Provedor de Justiça por trabalhadores em funções públicas, que contestam o dever de apresentar anualmente às entidades empregadoras o certificado de registo criminal, para os efeitos previstos no n.º 2, do artigo 2.º, da Lei n.º 113/2009, tal como reformulado pela Lei n.º 103/2015. Alegam os queixosos que o cumprimento anual de tal obrigação representa um significativo investimento de tempo em diligências burocráticas e um encargo acrescido[1], porventura evitáveis. Vejamos.

A Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, tal como alterada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, visa não apenas consagrar medidas de prevenção da reincidência e da exposição de menores ao abuso e exploração sexuais, mas também satisfazer as exigências que nesta matéria emanam do direito internacional e do direito da União Europeia.

É, porém, certo que os compromissos assumidos pelo Estado Português no plano internacional, à luz do artigo 5.º da Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais[2] e da Diretiva n.º 2011/93/UE[3], incidem especialmente sobre o momento do recrutamento e seleção de trabalhadores ou voluntários para exercer atividades que envolvem o contacto regular com menores.

Inicialmente, a Lei n.º 113/2009 respondia estritamente a tais exigências (cf. os n.os 1 e 2 do artigo 2.º, na sua redação original), mas com as alterações introduzidas em 2015, o legislador português optou por impor a apresentação do certificado de registo criminal, não apenas no momento do recrutamento e seleção dos trabalhadores, mas durante toda a vigência da relação jurídico-laboral ou da relação de colaboração em regime de voluntariado.

Para tal, impôs às entidades empregadoras e afins a obrigação de requerer anualmente o certificado de registo criminal e de «ponderar a informação constante do mesmo na aferição da idoneidade para o exercício das funções» (vide o n.º 2, do artigo 2.º, da Lei n.º 113/2009, na sua redação atual). Esta obrigação abrange as relações constituídas antes da entrada em vigor da Lei n.º 103/2015 que perdurem (artigo 6.º), e o seu incumprimento constitui contraordenação punível com coima, cujo montante pode ascender a € 3740,98 ou € 44 891,81 (se o responsável for pessoa singular ou coletiva, respetivamente), podendo também ser aplicadas sanções acessórias (nos termos do n.º 8 do artigo 2.º da Lei n.º 113/2009).

De acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 305/XII, «a introdução de uma norma que impõe a verificação anual da situação do trabalhador em face do registo criminal» com o intuito de «aferir se se mantêm as condições existentes à data do recrutamento» é justificada pela «necessidade de proteção das crianças», a qual «reclama igual tratamento para todos aqueles que no seu desempenho diário têm contatos regulares com elas». E sublinha-se que «Na verdade, não se compreenderia que um trabalhador, apenas por ter mais antiguidade no exercício de uma determinada atividade ou função, não estivesse sujeito à obrigação de ser ponderada a sua situação face ao registo criminal, pois a necessidade de proteção das crianças reclama igual tratamento para todos aqueles que no seu desempenho diário têm contatos regulares com elas.»[4]

Não se afigura, todavia, que estejamos perante uma questão de «igualdade de tratamento», já que o momento de seleção e recrutamento é, naturalmente, um momento de avaliação liminar da aptidão dos candidatos para o exercício das funções a desempenhar. Depois desse momento, e no âmbito de uma relação continuada, tal aptidão pode ser continuamente avaliada com base no desempenho, direta e imediatamente observado. Assim, parece evidente que existe uma diferença objetiva entre a necessidade de o empregador ponderar os antecedentes criminais do trabalhador no momento do recrutamento e a necessidade de requerer o certificado de registo criminal para fazer renovada avaliação na pendência da relação laboral.

Com esta medida, terá o legislador procurado em todo o caso garantir que as entidades empregadoras ou promotoras de atividades podem solicitar a apresentação do certificado de registo criminal em qualquer momento, de modo a justificar uma atuação tempestiva, caso concluam pela falta de idoneidade dos trabalhadores e colaboradores para o exercício das funções em questão. Do mesmo passo, a medida responsabiliza estas entidades pela contínua verificação dos dados com relevância criminal atinentes aos respetivos trabalhadores ou voluntários.

Ora, como já houve oportunidade de referir, a adoção da norma em apreço vai, em certo sentido das coisas, para lá do que é imposto pelo direito internacional e pelo direito da União Europeia, adotando medidas preventivas inovadoras e reforçadas para minimizar o risco de exposição dos menores à prática deste tipo de crimes. Mas afigura-se de facto questionável se tão relevante desígnio não poderia ser prosseguido de modo porventura mais eficaz se, em lugar da apresentação anual de um certificado de registo criminal, fosse devidamente efetivada a comunicação, pelas autoridades judiciárias, das decisões judiciais relevantes neste domínio às entidades empregadoras ou afins.

Relembro, aliás, que no que respeita aos trabalhadores em funções públicas, o n.º 2, do artigo 179.º, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas[5] prevê já que a condenação pela prática de qualquer crime (e, nos casos previstos no n.º 1 do mesmo artigo, também o despacho de pronúncia) deve ser comunicado à entidade empregadora pública pelo Ministério Público – o que, face às finalidades prosseguidas, parece tornar redundante a obrigação de apresentação anual do certificado de registo criminal pelos trabalhadores com vínculo de emprego público[6].                                       

Não deixei de notar que, no contexto do programa SIMPLEX, o Governo, através do Ministro da Educação, se propõe adotar um mecanismo de agilização do cumprimento da obrigação legal apreçada, por meio da autorização, pelos docentes, de acesso ao seu registo criminal na plataforma do SIGRHE – Sistema Interativo de Gestão de Recursos Humanos da Educação – e na ulterior formulação de um requerimento pela direção dos estabelecimentos escolares, com a listagem dos docentes que concederam autorização para aquele acesso.

Noto, todavia, que esta solução, por se referir apenas a docentes, não abrange todo o universo dos sujeitos passivos daquela obrigação, pelo que mantém inteira pertinência e atualidade esta Recomendação, ao menos no tocante a trabalhadores que, não sendo docentes, contactam regularmente com crianças.

Não creio, outrossim, que nada obste a que solução análoga à que vigora para os trabalhadores com vínculo de emprego público possa ser adotada em relação a todos os trabalhadores ou voluntários que exercem atividades que envolvam o contacto regular com menores, com evidentes vantagens: não só seria mais tempestiva a tomada de conhecimento das decisões judiciais relevantes pelas entidades empregadoras ou dinamizadoras de tais atividades; como também se reduziriam os custos associados à emissão anual dos certificados de registo criminal, que oneram não apenas os cidadãos obrigados, como também os competentes serviços públicos.

Neste sentido se pronunciou também o Conselho Superior do Ministério do Público no douto Parecer emitido sobre a Proposta de Lei n.º 305/XII:

«Mau grado a bondade e atratividade abstratas da medida, reputa-se de elevado custo económico e administrativo a sua execução, sendo certo que o seu escopo poderia ser atingido pela instituição do dever de comunicação à entidade patronal por parte da autoridade judiciária da condenação, tanto mais que, com a proibição prevista no art. 69.º-A do Código Penal se mostra incontornável – mesmo obrigatória para o Ministério Público na investigação – a determinação da profissão do arguido, o seu emprego e o conteúdo funcional do mesmo, isto, bem entendido, para além da identidade do empregador. (…)

Se se pensar apenas no número de professores, educadores, auxiliares de ação educativa, profissionais de saúde, profissionais forenses, entre outros, serão largas as dezenas de milhar de certificados de registo criminal a solicitar, isto para além de a previsão não dar adequada cobertura às zonas cinzentas de obrigatoriedade/dispensas.» [7]

 

Na verdade, entre outras soluções que poderiam ser ponderadas – v.g., a isenção do pagamento de taxas pela emissão de certificados de registo criminal para este efeito; ou o acesso à informação necessária ao cumprimento de exigência legal de apresentação do certificado do registo criminal pelas entidades empregadoras, mediante autorização dos trabalhadores[8] – a alteração proposta afigura-se a que melhor concilia, à luz de critérios de razoabilidade, eficiência e celeridade, não apenas os interesses dos trabalhadores (em funções públicas e privadas), dos voluntários e das entidades empregadoras ou promotoras, com os interesses públicos em presença.

            Razões pelas quais me permito assinalar à Assembleia da República a bondade de promover a alteração do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, no sentido de substituir o dever de apresentação anual do certificado de registo criminal por meios de comunicação das decisões processuais penais tidas por relevantes, que permitam de modo mais célere, mais fiável e menos oneroso alcançar os fins visados pela norma em apreço.

                 Na expetativa de que a presente Recomendação possa merecer o melhor acolhimento, apresento a Vossa Excelência, Senhor Presidente da Assembleia da República, os meus mais respeitosos cumprimentos,

 

 

 

 

 

 

O Provedor de Justiça,

 

 

(José de Faria Costa)

 

 

 

    

Sua referência

Sua comunicação

Nossa referência

 

S-PdJ/2016/9151

Q/7094/2015 (UT4)



[1] A taxa aplicável pela emissão do certificado de registo criminal para este fim é de € 5, não podendo ser solicitada através de meios eletrónicos. 

[2] Também designada Convenção de Lanzarote, onde foi assinada em 25.10.2007, tendo sido posteriormente aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 75/2012, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 90/2012, publicados no Diário da República, 1.ª Série, n.º 103, de 28 de maio. O n.º 3 do artigo 5.º da Convenção cinge-se à adoção de medidas no âmbito das «condições de acesso às profissões cujo exercício implique, de forma habitual, contactos com crianças», referindo-se expressamente aos «candidatos a tais profissões».

[3] O n.º 2 do artigo 10.º da Diretiva n.º 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro, estabelece que cada Estado-Membro deve garantir que as entidades empregadoras, «ao recrutarem pessoal para actividades profissionais ou para actividades voluntárias organizadas que impliquem contactos directos e regulares com crianças, tenham o direito de solicitar informação nos termos da legislação nacional, por qualquer meio apropriado». A Diretiva foi publicada no Jornal Oficial da União Europeia, Série L, n.º 355, de 17 de dezembro de 2011, pp. 1 e ss., e retificada no Jornal Oficial, Série L, n.º 18, de 21 de janeiro de 2012, p.7.

[4] Os trabalhos preparatórios da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, encontram-se publicados em:

http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=39169  [consultado em 27.04.2016].

[5] Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, doravante designada LTFP.

[6] Refira-se ainda que este dever de comunicação não é uma inovação da LTFP, encontrando-se já previsto no Estatuto Disciplinar dos trabalhadores em funções públicas, seja pelo artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de janeiro, seja pelo artigo 7.º da Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro.

[7] Vide as páginas 9 e 10 do Parecer, disponível no sítio citado supra.

[8] Realmente, as relações jurídicas que forem precedidas da realização de um «procedimento administrativo», do qual dependa «a concessão de emprego», encontram-se abrangidas pelo n.º 3, do artigo 8.º, da Lei n.º 37/2015, de 15 de maio, que permite às entidades públicas competentes pela instrução dos procedimentos aceder às informações relevantes, mediante autorização dos candidatos. A letra da lei é todavia clara ao identificar o seu âmbito, o qual – no que respeita aos procedimentos relacionados com a concessão de emprego – se cinge ao grupo restrito de aspirantes a trabalhadores, que sejam recrutados através de um procedimento administrativo, instruído por entidades públicas.