A Sua Excelência
O Ministro da Educação
Av. 5 de Outubro, 107
1069-018 LISBOA
– por protocolo –
Lisboa, 18 de novembro de 2016
Assunto: Qualificação profissional para o grupo de recrutamento 120. Omissão do dever de regulamentar.
Recomendação n.º 5/B/2016
(alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da
Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)
Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, recomendo a Vossa Excelência que:
seja regulada, por portaria, a aquisição de qualificação profissional para a docência no grupo 120 por parte dos titulares do grau de mestre em ensino de Inglês e de outra língua estrangeira no ensino básico que não tenham realizado a prática de ensino supervisionado de Inglês no 1.º ciclo, mediante a definição dos complementos de formação e do procedimento de certificação.
§ 1.º Da questão subjacente às queixas apresentadas
A introdução da disciplina de Inglês no 1.º ciclo, concretizada pelo Decreto-Lei n.º 176/2014, de 12 de dezembro, tornou necessária a criação de um novo grupo de recrutamento – a que foi conferida a denominação de «grupo 120» – e, bem assim, a definição dos requisitos de que depende a qualificação profissional para a docência no âmbito deste grupo.
O referido diploma, se por um lado determinou que a obtenção de qualificação profissional para a docência no grupo 120 passa a depender da conclusão de mestrado com a especialidade de «Ensino de Inglês no 1.º ciclo do Ensino Básico»[1], na linha da exigência consagrada no novo regime da qualificação profissional para a docência[2], não deixou, por outro lado, de regular o acesso à docência da disciplina em questão por parte dos docentes que adquiriram anteriormente outras habilitações pertinentes ou que dispõem já de experiência relevante na lecionação daquela disciplina ou nível de ensino.
Neste enquadramento, o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 176/2014, de 12 de dezembro, determina as condições para que os detentores de habilitações académicas adquiridas anteriormente sejam considerados como possuidores de qualificação profissional para a docência no grupo 120. O artigo 9.º do mesmo diploma prevê, também, a possibilidade de os mesmos docentes, que não reúnam todos os requisitos previstos no artigo 8.º, poderem vir a completar formação complementar que lhes confira aquela qualificação.
De entre as situações contempladas no artigo 8.º figuram, no n.º 1, os titulares do grau de mestre em ensino de Inglês e de outra língua estrangeira no ensino básico, os quais se consideram, sem mais, qualificados profissionalmente para o grupo 120, desde que tenham realizado, no âmbito do ciclo de estudos de mestrado, a prática de ensino supervisionada de inglês no 1.º ciclo do ensino básico.
O artigo 9.º, por seu turno, dispõe que:
«os titulares do grau de mestre referido no artigo anterior que não tenham realizado a prática de ensino supervisionada de Inglês no 1.º ciclo, assim como aqueles que tenham obtido qualificação profissional para a docência nos grupos de recrutamento 110, 220 e 330 que já detenham, ou venham a obter, após a entrada em vigor do presente decreto-lei, formação certificada no domínio do ensino de Inglês no 1.º ciclo do ensino básico, podem adquirir qualificação profissional para a docência no grupo 120» (n.º 1).
O n.º 2 do mesmo preceito prescreve que:
«para efeitos do disposto no número anterior, o membro do Governo responsável pela área da educação define, por portaria, os complementos de formação e o respetivo procedimento de certificação dos docentes, ouvidas as organizações representativas das instituições de ensino superior».
Ora, a regulamentação emitida ao abrigo desta norma habilitante, contida na Portaria n.º 260-A/2014, de 15 de dezembro, contempla apenas a segunda das situações que integram a previsão do n.º 1 do artigo 9.º, ou seja, a dos titulares de qualificação profissional para a docência nos grupos de recrutamento 110, 220 e 330, definindo qual a natureza da «formação certificada no domínio do ensino de inglês no 1.º ciclo do ensino básico» que lhes conferirá a possibilidade de lecionar Inglês no 1.º ciclo com qualificação profissional. O que vale por dizer que se encontra absolutamente omissa quanto à formação complementar que, para o mesmo efeito, pode ser adquirida pelos detentores do grau de mestre referido na primeira parte do n.º 1 do artigo 9.º que, como ali se prevê, não tenham realizado a prática de ensino supervisionada da disciplina no 1.º ciclo.
Em face da ausência de regulamentação que discipline as condições para a aquisição da qualificação profissional para o referido grupo 120, os docentes nesta situação veem-se impedidos de lecionar esta disciplina, o que motivou a apresentação de queixas ao Provedor de Justiça.
Os docentes queixosos manifestam em comum a circunstância de, no âmbito do mestrado em ensino de Inglês e de outra língua estrangeira que concluíram, terem realizado a prática de ensino supervisionada, não no domínio do 1.º ciclo, mas dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, uma vez que estes níveis de ensino também se compreendiam no referido mestrado. Invocam que a situação se revela tanto mais iníqua quanto, à luz do regime legal que se encontrava em vigor na data em que a frequência do mestrado foi iniciada, este conferia qualificação profissional para a lecionação de Inglês em todo o ensino básico (referência 7 do anexo ao Decreto-Lei n.º 43/2007, de 22 de fevereiro).
§ 2.º Da omissão do dever de regulamentar
O artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 176/2014, que se citou, impõe à Administração – e, em concreto, ao membro do Governo responsável pela área da educação – um dever de regulamentar e o seu não cumprimento integral traduz‑se em ma omissão ilegal. Ancora-se tal asserção, desde logo, na previsão expressa da dependência regulamentar da norma ou de falta de autoexequibilidade, ínsita no segmento normativo que faz depender os «efeitos do disposto no número anterior» da emissão de regulamentação. Por outro lado, a própria norma, no cotejo dos seus números 1 e 2, torna evidente a sua insuficiente densidade normativa e a consequente necessidade do seu suprimento através da definição, por via regulamentar, do conceito de formação complementar apta a conferir aos docentes, em complemento da formação e da experiência já adquiridas, a qualificação profissional necessária para ensinarem Inglês às crianças do 1.º ciclo.
A carência de exequibilidade da norma comporta, para o órgão a que foi atribuída a competência regulamentar, uma verdadeira imposição legal: embora disponha de alguma autonomia na conformação do «como» da regulamentação, ele está vinculado a emitir a regulamentação necessária, por exigência do princípio da legalidade e da consequente preferência de lei.
Não há que curar de saber, hoje, qual seria o prazo para o cumprimento deste específico dever de regulamentação. Na verdade, a Portaria n.º 260-A/2014, de 15 de dezembro, ao conter apenas uma regulamentação parcial da norma em causa, definindo, assim, a formação complementar a realizar por apenas uma fração dos destinatários da norma, envolve uma diferenciação de tratamento sem fundamento material bastante que a legitime. Por essa razão, o prazo para completar a regulamentação em falta é ditado pela necessidade de conferir aos docentes abrangidos pelo segmento da norma não regulamentada as mesmas condições proporcionadas aos restantes docentes, ou seja, a possibilidade de complementarem a sua formação e de concorrerem ao procedimento concursal pendente, com vista ao exercício de funções docentes naquele grupo.
Em qualquer caso, e como é sabido, o novo Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a prever que, no silêncio da lei, é de 90 dias o prazo para a emissão de regulamento necessário para dar exequibilidade a ato legislativo carente de regulamentação (n.º 1 do artigo 137.º), prazo que, no caso, se encontra há muito ultrapassado[3].
§ 3.º Da liberdade de trabalho e do acesso a funções públicas
Como se deixou antever já, a omissão assinalada envolve igualmente a preclusão do direito fundamental de acesso a funções públicas em condições de igualdade. Ao adotar a regulamentação necessária para que apenas uma parte dos docentes já detentores de formação e experiência relevantes possa obter a qualificação profissional para a docência no grupo 120, excluindo os demais docentes em situação que a lei qualifica como paralela à daqueles[4], a Administração comprime o conteúdo essencial do seu direito de acesso a funções públicas (n.º 2 do artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa). Mais: considerando que o regime jurídico de habilitação profissional para a docência neste nível de ensino se aplica não só aos estabelecimentos de ensino públicos, mas também aos particulares e cooperativos[5], a obstrução à aquisição das habilitações necessárias traduz-se em uma compressão injustificada da liberdade fundamental de exercício de profissão (n.º 1 do artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa). Como é sabido, a liberdade de profissão compreende, quer a liberdade de escolha, quer a liberdade de exercício de qualquer profissão. E esta última integra, entre outros, o direito «de obter, sem impedimentos, nem discriminações, as habilitações legais (que não somente as escolares) e os restantes requisitos para o exercício da profissão»[6].
Dada a sua inscrição no catálogo dos direitos fundamentais, a liberdade de profissão, assim como o direito de acesso à função pública, que é uma manifestação daquela liberdade, só podem conhecer restrições estatuídas por lei – e não por via regulamentar ou administrativa – que se ancorem em fundamento consentâneo com o quadro de valores constitucionais e que se revelem proporcionadas ao objetivo que prosseguem.
Ora, no caso, a compressão destes direitos resulta da omissão de uma atividade administrativa devida e traduz-se, até ao momento, na impossibilidade de lecionar a disciplina de inglês no 1.º ciclo por dois anos escolares.
Ademais, a inércia da Administração perpetua a desigualdade entre os dois grupos de docentes destinatários da norma contida no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 176/2014, de 12 de dezembro, uma vez que os professores privados do exercício de funções disporão tendencialmente, no futuro, de tempo de serviço inferior ao dos docentes que já se encontram habilitados e, portanto, deterão menor vantagem nos concursos de recrutamento a que, uma vez suprida a omissão, poderão vir a candidatar-se[7].
§ 4.º Do cumprimento do dever de audição da entidade visada nas queixas
Em cumprimento do dever de audição da entidade visada nas queixas, em 19 de junho de 2015, solicitei a Sua Excelência o Ministro da Educação a pronúncia sobre a questão, bem como a informação das medidas que previa tomar com vista a superar a situação descrita[8]. Não obstante as diligências de insistência desenvolvidas, tal comunicação não mereceu resposta. Sobre a matéria, veio apenas a Diretora-Geral da Administração Escolar, sem referência expressa àquela (ou outra) comunicação, informar, em 2 de outubro de 2015, que «reconhecendo a omissão regulamentar apresentada por V. Exa, a curto prazo a DGAE apresentará ao Ministério da Educação e Ciência a premência de ultrapassar este constrangimento, mediante regulamentação do segmento inicial do n.º 1 do art. 9.º do Decreto-Lei n.º 176/2014, de 12 de dezembro».
Por fim, transmitido o assunto ao gabinete de Vossa Excelência, em abril de 2016[9], não se logrou obter qualquer pronúncia sobre a matéria, nem se observou, entretanto, a emissão da regulamentação em falta.
Dou, pois, por cumprido o dever de audição prévia preceituado no artigo 34.º do Estatuto do Provedor de Justiça.
§ 5.º Conclusão
Em face do exposto, concluo que, não só por imposição do princípio da legalidade, mas também por estar em causa a observância da liberdade de exercício de profissão e do direito de acesso a funções públicas em condições de igualdade, urge suprir a omissão ilegal do dever de regulamentar, mediante a definição, por portaria, das condições necessárias para que os titulares do grau de mestre em ensino de Inglês e de outra língua estrangeira no ensino básico, que não tenham realizado a prática de ensino supervisionado de Inglês no 1.º ciclo, possam adquirir qualificação profissional para lecionar esta disciplina.
Dignar-se-á Vossa Excelência, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 38.º do Estatuto do Provedor de Justiça, transmitir-me, dentro de 60 dias, a posição assumida quanto à presente recomendação.
Na expectativa de que esta possa merecer o melhor acolhimento, apresento a Vossa Excelência, Senhor Ministro da Educação, os meus mais respeitosos cumprimentos,
O Provedor de Justiça,
(José de Faria Costa)
Sua referência
Sua comunicação
Nossa referência
S-PdJ/2016/24174
Q/2363/2015 (UT4)
[1] Artigo 7.º e anexo III do Decreto-Lei n.º 176/2014, de 12 de dezembro.
[2] Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de maio.
[3] Mesmo que contado desde a entrada em vigor do novo Código do Procedimento Administrativo.
[4] N.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 176/2014, de 12 de dezembro.
[5] Alínea b) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 79/2014, de 12 de dezembro.
[6] Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, Constituição Portuguesa: Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 475.
[7] Na medida em que a ordenação no concurso toma em consideração, entre outros fatores, o tempo de lecionação no grupo a que o docente se candidata.
[8] Comunicação com a referência S-PdJ/2015/2613.
[9] Comunicação com a referência S-PdJ/2016/6975.