Exmo. Senhor
Presidente do Conselho de Administração
SCUTVIAS – Autoestradas da Beira Interior, S.A.
Centro de Assistência e Manutenção
Estrada Nacional 18
6005-193 Lardosa
Lisboa, 16 de dezembro de 2016
Assunto: Direitos dos utentes das vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas
Recomendação n.° 6/A/2016
(alínea a), do n.º 1, do artigo 20.° da Lei n.° 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.° 17/2013, de 18 de fevereiro)
Nos termos e para os efeitos do disposto da alínea a), do n.° 1, do artigo 20.° do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n.° 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.° 17/2013, de 18 de fevereiro, e em face das motivações seguidamente apresentadas, recomendo à empresa Scutvias – Autoestradas da Beira Interior, S.A. (designada doravante por Scutvias), presidida por V. Exa. que:
Em face da não demonstração do cabal cumprimento, em concreto, dos deveres de vigilância, assuma a responsabilidade pela produção do sinistro ocorrido em 14 de maio de 2014, pelas 02h00, consubstanciado no embate da viatura automóvel com a matrícula […] em obstáculo (parte de um pneu) existente ao Km 44 da A23, no sentido Castelo Branco/Torres Novas; e, em consequência, indemnize o acidentado pelos danos sofridos, cumprindo o que a este respeito é legalmente estabelecido no regime jurídico da responsabilidade das concessionárias pelos acidentes ocorridos em autoestradas por objetos existentes na faixa de rodagem, aprovado pela Lei n.º 24/2007, de 18 de julho.
Queira V. Exa. atender às motivações que apresento, no termo da apreciação das questões controvertidas, a qual compreendeu, como não poderia deixar de ser, as explicações prestadas pela Scutvias, em observância do princípio do contraditório plasmado no artigo 34.° do Estatuto do Provedor de Justiça.
§ 1.° A queixa
O queixoso […] requereu a intervenção deste órgão do Estado junto da Scutvias, reclamando o ressarcimento dos danos que sofreu na viatura automóvel com a matrícula 51-08-VC, em resultado do embate em obstáculo (parte de um pneu) existente ao Km 44 da A23, no sentido Castelo Branco/Torres Novas.
O acidente ocorreu em 14 de maio de 2014, pouco antes das 02h00, e a confirmação da causa foi verificada no local pelos serviços de assistência da própria Scutvias. O queixoso solicitou à Scutvias a assunção da responsabilidade pelos danos decorrentes do sinistro. Todavia, a empresa a que V. Exa. preside eximiu-se dessa responsabilidade, argumentando em síntese que:
«no âmbito das suas obrigações contratuais no domínio da segurança da circulação, à Scutvias não pode ser exigida uma presença permanente e simultânea na totalidade da rede, mas sim uma cadência diligente e aceitável de patrulhamentos, que são efetivamente realizados por esta empresa.
Relativamente ao incidente em questão, podemos assegurar a V. Exa., que foram efetuados os patrulhamentos permanentes e regulares, quer pelo pessoal da Assistência desta Concessionária, quer pelo Destacamento de Trânsito da GNR em serviço na nossa rede, não tendo sido detetada qualquer anomalia, naquele período, que pudesse afetar a normal segurança da circulação»[1].
§ 2.º O contraditório
Analisados os elementos apresentados na queixa, os meus serviços solicitaram à Scutvias que especificasse as ações de patrulhamento levadas a cabo nos dias 13 e 14 de maio de 2014. Com efeito, a simples invocação, por parte da Scutvias, de que à data estavam assegurados patrulhamentos com uma cadência diligente e aceitável, permanente e regular, não se mostrava suficiente, o que motivou um pedido de esclarecimentos adicionais. Nessa sequência, a Scutvias veio esclarecer que os patrulhamentos são realizados em turnos de 8 horas, 24 horas por dia, 365 dias por ano, em uma concessão de 177km, divididos em três troços. Cada um destes troços é, por sua vez, patrulhado por um vigilante motorista, em viatura apropriada[2].
A informação prestada continuava a afigurar-se demasiado vaga, razão pela qual se solicitou a concretização das ações de patrulhamento realizadas no dia do acidente, no troço em causa, quer pelo pessoal de assistência da concessionária, quer pelo Destacamento de Trânsito da Guarda Nacional Republicana em serviço na rede. Foi ainda solicitado que fossem materializadas as ocorrências detetadas e resolvidas, bem como a prestação de informação sobre eventual cobertura do local onde ocorrera o sinistro por sistema de videovigilância.
Em resposta, a Scutvias informou que a câmara de videovigilância[3] mais próxima do local do acidente se situa a 6.400 metros e que não dispunha de informação quanto aos patrulhamentos efetuados sob responsabilidade da Guarda Nacional Republicana.
Apreciados os elementos carreados para a instrução[4], apurou-se o seguinte:
i. No dia 13 de maio de 2014, as últimas passagens no troço onde ocorreu o acidente, realizadas pelo serviço de assistência da Scutvias, deram-se às 19h37 (sentido N/S) e às 19h53 (sentido S/N).
ii. Não foi detetada a presença de qualquer objeto que pudesse pôr em causa a segurança da circulação.
iii. Tendo o sinistrado solicitado telefonicamente a presença da assistência à 01h52, do dia 14 de maio de 2014, por motivo do acidente, esta chegou ao local às 02h27.
iv. Até então não havia sido dado notícia de qualquer ocorrência.
v. Assume a Scutvias que o veículo acidentado circulava em excesso de velocidade (superior a 120km/hora), conforme resultaria do inscrito em quadro e gráfico que juntou.
§ 3.º A análise da situação reclamada
Sendo a autoestrada uma via onde é permitida a circulação à velocidade mais elevada (120 km/hora), entendeu o legislador que o risco acrescido inerente a esta permissão exigiria da concessionária um cuidado redobrado de garantia da segurança do trânsito. Assim, viria a Lei n.º 24/2007, de 18 de julho[5], a estabelecer que
«Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem» (alínea a, n.º 1, do artigo 12.º da referida Lei).
Ficou, assim, legalmente consagrado o princípio a favor do utente, pondo-se fim a uma ampla querela doutrinária e jurisprudencial.
«Estando-se perante especiais actividades económicas geradoras de riscos elevados de lesão de bens e direitos de terceiros, muitas vezes ínsitos ao próprio tipo de bens cuja aquisição se oferece, afigura-se como previsível que o legislador possa submeter essa actividade concreta a especial regime de responsabilidade e isso principalmente quando ela é levada a cabo em regime de concessão pública, pois dela poderá sobrar para o Estado a emergência de ter de suprir as consequências danosas para os utilizadores desses bens, mormente através do cumprimento dos deveres de prestação dos serviços de saúde e de segurança social»[6].
Querendo fazer-se cessar a especial onerosidade que recaía sobre o utente de apresentar prova da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil — por efeito da aplicação dos termos gerais deste instituto —, ficou estabelecida a inversão do ónus da prova, transferindo-se para a concessionária a obrigação de demonstrar ter tomado as medidas adequadas a evitar o sinistro.
A presunção legal de culpa, na fórmula adotada pelo regime legal em referência, ao assumir o utente como a parte mais fraca e mais carente de proteção, visa prosseguir duplo objetivo: o de agilizar e facilitar o reconhecimento da obrigação de indemnizar, por um lado, e o de incentivar o reforço, por parte da concessionária, das medidas necessária a evitar acidentes em resultado da causa descrita, por outro. Isto, porquanto vinham a doutrina e a jurisprudência assinalando um evidente desequilíbrio entre as partes: à redobrada dificuldade do utente em fazer prova das circunstâncias que determinaram o acidente correspondia, da parte das concessionárias, a opacidade na apresentação dos resultados da investigação. A justa repartição do ónus da prova aconselhava, pois, à adoção da fórmula que viria a ser acolhida pelo diploma legal citado.
Refira‑se que esta presunção legal de culpa não deixa de constituir também uma presunção legal de ilicitude, uma vez que o acidente que decorra da circunstância elencada indicia incumprimento por parte da concessionária do dever que sobre ela impende de assegurar a segurança da circulação, o que constituiu a prática de um facto ilícito (v.g., omissão do dever de vigilância, omissão da tomada das ações necessárias à remoção do obstáculo em tempo útil)[7].
O legislador introduziu, assim, no nosso ordenamento jurídico, um juízo de censura legal ao pressupor que o acidente se terá dado porque a concessionária não agiu com o zelo devido, incumprindo as suas obrigações. Demonstrado pelo lesado o nexo de causalidade entre o facto e o dano, cabe à concessionária ilidir a presunção, provando que tomou as providências devidas por forma a evitar o sinistro, ou invocando as causas de escusa elencadas na norma do n.º 3, do mesmo artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, ou defendendo-se, provando que a conduta do lesado foi determinante do acidente.
Impende, pois, sobre a concessionária o ónus de apresentar prova de que atuou com a diligência devida para assegurar a comodidade e segurança de quem circula na autoestrada, através do patrulhamento regular da via em períodos que garantam uma proteção efetiva dos utentes. Não basta a genérica invocação do cumprimento das obrigações de vigilância e assistência.
À especial perigosidade associada à permissão da circulação à velocidade absoluta mais elevada admitida pelo Código da Estrada, em razão da natureza da autoestrada, corresponde o dever de a concessionária atuar com diligência devida a evitar a produção de danos, por via de uma suficiente supervisão, monotorização e conservação. Todavia, porque não pode ser exigido à concessionária que a supervisão, a monitorização e a conservação se faça de forma permanente e ininterrupta, a análise do cumprimento de tais deveres há de fazer-se de forma casuística, importando, pois, em face das considerações tecidas, apreciar o caso concreto.
A Scutvias explicou que não detetou o objeto na via antes da ocorrência do sinistro, nem foi informada por qualquer meio, antes do acidente, da existência dele. Concluo, pois, que não existia qualquer sinalização a advertir os condutores de veículos sobre a existência de objetos caídos no pavimento. Aquela entidade afirmou ainda que, no dia do acidente, os seus funcionários efetuaram diversos patrulhamentos, tendo passado algumas vezes no local, sem que tivessem observado o objeto, e referiu que tais os patrulhamentos são efetuados em turnos de 8 horas, durante as 24 horas de cada dia, todos os 365 dias do ano.
Não obstante, no tocante aos patrulhamentos no troço em questão, a Scutvias assegurou que, no dia 13 de maio de 2014, os últimos ocorreram às 19h37 (sentido N/S) e às 19h53[8]. Ou seja, quase 6 horas antes do sinistro. A esta circunstância acresce que o aparelho de videovigilância mais próximo do local onde se deu o acidente se encontra a 6.400 metros, não tendo a Scutvias esclarecido se este está apto a servir de suporte à monotorização das condições de segurança naquele preciso ponto.
Não se vê, pois, como perante esta factualidade, a Scutvias possa concluir que cumpriu devidamente o dever de vigiar as condições de circulação, assegurando que esta se processava em segurança, sendo que cabia à empresa demonstrá-lo, o que não fez.
Na verdade, não basta a genérica alegação de que adota um sistema de vigilância e que possui meios técnicos para o fazer; cabe-lhe, outrossim, provar a sua utilidade e cumprimento eficaz. Perante as parcas informações prestadas pela Scutvias, subsistem fundadas dúvidas quanto à suscetibilidade de ser evitado o acidente.
É sobre a concessionária que recai o dever de impedir a permanência de objetos na via, de sorte que seja posta em perigo a segurança rodoviária, pelo que a questão dos meios adequados para o impedir é problema que apenas diz respeito à própria.
Como refere a jurisprudência:
«Só ela [a concessionária] tem (e se não tem, deveria ter) os meios idóneos a responder a isso, por ser a concessionária da via, com as inerentes obrigações, designadamente, as de permanentemente garantir uma via desobstruída e em adequadas condições, de molde a permitir a circulação rápida (dada a natureza da via) dos veículos em total segurança e comodidade, a qualquer hora do dia e/ou da noite, aos respectivos utentes pagadores da correspondente taxa»[9].
Em um outro aresto pode ler-se que:
«Em caso de acidente rodoviário com danos para pessoas ou bens, a Lei 24/2007 de 18/7 veio estabelecer no seu art.º 12, nº 1, uma presunção de incumprimento pelas concessionárias da obrigação de manter aquelas vias – cuja exploração e conservação lhes está cometida – em condições de segurança para o tráfego que ali é suposto processar-se.
A elisão dessa presunção não se basta com a demonstração pela concessionária da observância de procedimentos de patrulhamento e verificação rotineiros, designadamente das vedações laterais e da desobstrução da via.
Essa elisão apenas pode ser lograda com a prova de que acidente proveio da ocorrência de um facto que, em termos normais, não poderia ser tempestivamente evitado ou controlado pela estrutura logística ao serviço da concessionária.» [10]
Se fosse aceite como suficiente a mera alegação genérica de cumprimento para ilidir a presunção legal de culpa, defraudar-se-ia a proteção que o legislador quis garantir por meio da fórmula que consagrou. Transpor-se-ia, a final, para o utente um ónus desproporcionado de prova, exigindo-lhe que alegasse e demonstrasse que a concessionária devia saber da existência do objeto na via e que, nessa hipótese, nada fez para o remover e, alternada ou conjuntamente, o sinalizar[11].
Alega a empresa a que V. Exa. preside que o veículo acidentado circulava a velocidade excessiva, porque superior ao limite velocidade de 120Km/hora estabelecido para o local. Todavia, os elementos que a Scutvias me disponibilizou, e nos quais sustentava esta afirmação, não se afiguram minimamente claros. Desde logo, os quadros que a suportavam não apresentavam a identificação dos veículos em circulação, nem imputavam discriminadamente a velocidade a que cada um circulava no preciso local onde se deu o embate. Tão pouco prestou informação quanto à natureza do aparelho, modelo e identificação da empresa acreditada responsável pela aferição dos resultados que regista. E, igualmente, não esclareceu o modo e a periodicidade das eventuais verificações (controlos metrológicos de métodos e instrumentos de medição e controlo de velocidade), ficando assim por demonstrar a fiabilidade da informação transmitida a este respeito; questão tanto mais importante quanto o controlo automático da velocidade por radar se revela como meio adequado à redução da sinistralidade rodoviária[12].
A este propósito, importará recordar que a concessionária não tem competência legal para fiscalizar o trânsito, muito menos para emitir juízos decisórios sobre eventuais infrações que detete. Com efeito, o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro[13], contém o elenco taxativo das entidades fiscalizadoras, o qual não inclui as concessionárias. Para além de que só o auto de notícia levantado e assinado pela autoridade ou agente de autoridade faz fé sobre os factos presenciados, mesmo admitindo prova em contrário, só assumem idêntica força probatória os elementos obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares (n.º 3 e n.º 4 do artigo 170.º do Código da Estrada).
De todo o modo, refira-se que à concessionária não bastaria demonstrar (se possível fosse) que o veículo circulava a velocidade excessiva, porque superior à legalmente admitida; impor-se-lhe-ia a prova da causalidade adequada.
«As infracções estradais praticadas pelos intervenientes em acidente de viação podem nada ter a ver com a ocorrência do mesmo. O que há a considerar, em todos os casos, é a gravidade das infracções e a forma determinante, num juízo de causalidade, que as mesmas tiveram na produção do sinistro.» [14]
A referenciação da velocidade máxima permitida no local haveria, pois, de ser concatenada com a natureza do acidente e as características da via, não sendo bastante por si só, frisa-se, para formular juízo quanto à culpa pela produção do sinistro. Assim, ainda que se assumisse sem reservas que no preciso momento do embate o veículo acidentado circulava acima do limite de velocidade legalmente estabelecido (o que não pode conceder-se face à fragilidade da argumentação exposta), essencial era saber se, circulando de noite e na falta de qualquer aviso, teria o condutor a possibilidade de evitar aquele obstáculo abruptamente surgido.
§ 4.° Conclusões
À luz das motivações precedentemente expostas, e nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, recomendo à Scutvias que assuma a responsabilidade pela produção do sinistro, indemnizando o acidentado pelos danos sofridos, desse modo cumprindo o que a este respeito é estabelecido no regime jurídico da responsabilidade das concessionárias pelos acidentes ocorridos em autoestradas por objetos existentes na faixa de rodagem, aprovado pela Lei n.º 24/2007, de 18 de julho.
Dignar-se-á V. Exa, em cumprimento do disposto no n.° 2 do artigo 38.° da Lei n.° 9/91, de 9 de abril, transmitir-me, dentro de 60 dias, a posição que vier a assumir.
Queira aceitar, Senhor Presidente, os meus respeitosos cumprimentos,
O Provedor de Justiça,
(José de Faria Costa)
Sua referência
Sua comunicação
Nossa referência
21-4-2016
S-PdJ/2016/21112
Q/4162/2014
DGR/16/O.993/00607
[1] Tomada de posição comunicada ao queixoso, pela Scutvias, por correio eletrónico de 19 de maio de 2014, sob a ref.ª DEX/14/O.993/00621.
[2] Ofício DEX/15/O.993/00111, de 30 de janeiro de 2015.
[3] A qual serve unicamente o propósito de monitorização, não procedendo, portanto, ao registo de imagens. Cf. informação prestada pela Scutvias, em 10 de março de 2015.
[4] Ofício DGR/15/00887, de 9 de julho de 2015; ofício DGR/15/O.993/01630, d