PROVEDOR DE JUSTIÇA : “CONTRA-PODER” OU PODER INSTITUCIONAL, In PROVEDOR DE JUSTICA: RELATORIO INTERCALAR
IN PROVEDOR DE JUSTIÇA: RELATÓRIO INTERCALAR, Centro de Publicações da Provedoria de Justiça, 1991.
PROVEDOR DE JUSTIÇA – “CONTRA-PODER” OU PODER INSTITUCIONAL ? (*)
P. Desde que tomou posse como Provedor de Justiça, em Junho de 1990, tem revelado um estilo muito próprio, de diversificada intervenção na vida pública. Entrou em frequente colisão com o Governo. Fá-lo como um “poder” ou como um “contra-poder” ?
R. A questão não é meramente acadêmica e nela não se discute o sexo dos anjos. Situa-se, desde logo, no plano dos princípios. Como o qualifica o seu actual Estatuto (Lei no 9/91, de 9 de Abril) é o Provedor de Justiça um órgão do Estado totalmente independente e não destituível, nem sequer pela própria Assembleia da República, que o elegeu.
São-lhe atribuidas imunidades impares na nossa ordem jurídica; basta referir que “não responde civil ou criminalmente pelas recomendações, reparos ou opiniões que emita ou pelos actos que pratique no exercício das suas funções” (artº 8º, nº 1, daquela Lei). Tem, pois, uma reforçada legitimidade para ser um poder institucional. Aliás, os “contra-poderes” são realidades sociológicas que apenas servirão para alguma coisa se tiverem como suporte um poder (institucional, mediático, sindical, económico, sei lá).
Se fosse somente um contra-poder não dotado de força institucional o Provedor mais não seria do que um ornamento do regime, esvaziado da eficácia que gera dignidade. E, pior do que isso, criaria a falsa ilusão de que os poderes convencionais (como, por exemplo, o Governo) estavam a ser por ele controlados, quando tudo se passaria na benigna paz dos textos. A sua verdadeira utilidade social seria igual a zero.
Claro que terá que haver o sentido da medida. Ele deve, muito simplesmente, ser um poder justo e isento, sem pesporrências de infalibilidade (ninguém é detentor da verdade absoluta) nem contumélias de salão. Cabe-lhe contribuir para que a vida das pessoas seja mais natural e normal – e deve-o fazer com naturalidade e normalidade.
Isto no plano dos princípios. Na transição destes para as realidades concretas tendem as coisas, não raramente, a desfigurar-se. Se é certo que neste ano de 1991 se deu um salto qualitativo na rentabilidade da instituição (do que as pessoas já se aperceberam, pois as queixas ao Provedor aumentaram em mais de um milhar), sinto que cada intervenção que faço resulta sempre numa roleta russa: ou é plenamente conseguida ou não é acatada com base em argumentos que mesmo qualquer embrionário jurista consideraria irrazoáveis e sem fundamento. 50% dos destinatários acreditam na moral do êxito (que é a deles) e somente uns 50% se sentem vinculados à ética da responsabilidade (que todos deveriam tomar como padrão).
Daí que como logo anunciei nas palavras que disse no acto de posse (já publicadas no Diário da República), findo o 1º ano de mandato comecei a reflectir sobre a vantagem (pública) em continuar a fazer este enorme sacrifício (pessoal) pelo meu País.
Devo antecipar que os resultados não são auspiciosos, não obstante a excepcional cooperação e compreensão que sempre recebi da Assembleia da República, e o apoio que, em termos logísticos, me foi prestado por alguns sectores do Governo. Relego, no entanto, a decisão final (ou a sua publicitação) logo para depois das próximas eleições. Se o fizesse agora estaria a influenciar, se bem que indirectamente, os ablativos destas – inobservando o meu dever de completa não interferência política (politicienne).
P. A generalidade dos portugueses sabe que existe um Provedor de Justiça, sabe que o cargo é exercido pelo Dr. Mário Raposo, recorre a ele cada vez mais, mas, no fundo, não sabe com exactidão como ele se configura. O que é, em síntese, o Provedor de Justiça ?
R. Não irei, por certo, fazer um exaustivo compêndio do que é o Provedor de Justiça. Pegando na Constituição e no actual Estatuto (o que foi aprovado por unanimidade na Assembleia da República e que deu origem àquela Lei nº 9/91) acrescentarei que é um Orgão do Estado unipessoal, que a Constituição autonomamente caracteriza no artº 23º, ou seja, logo no início da área normativa consagrada aos direitos fundamentais dos cidadãos.
Ele é o seu preferencial garante, assegurando, através de meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos. “Tem os direitos, honras, precedência, categoria, remunerações e regalias idênticas às de ministro” (artº 9º do Estatuto), mas, mais do que isso, é membro nato do Conselho de Estado (artº 145º da constituição), na boa companhia do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Presidente do Tribunal Constitucional, dos presidentes dos governos regionais e dos antigos presidentes da República eleitos na vigência da Constituição.
Tem como colaboradores dois Provedores-Adjuntos,equiparados a subsecretários de Estado, que pode nomear e exonerar a todo o tempo, e, ainda, dois coordenadores e 20 assessores, para além do seu gabinete pessoal, assimilável ao dos ministros. Todos eles são autoridades públicas (excepto, claro está, os membros do gabinete).
Pode efectuar, com ou sem aviso prévio, visitas de inspecção a todo e qualquer sector da actividade da administração central, regional e local (incluindo o sector empresarial do Estado, em sentido amplo), procedendo às investigações e inquéritos que considere convenientes.
Todos os orgãos e agentes das entidades públicas, civis e militares, têm o dever de lhe prestar os esclarecimentos e informações que lhes solicite, podendo determinar a presença na Provedoria de Justiça de qualquer entidade sujeita ao seu controlo; a falta de comparência ou de qualquer tipo de cooperação constitui crime de desobediência. Do mesmo modo pode determinar a comparência de qualquer cidadão, implicando a recusa injustificada crime de desobediência qualificada.
Quando emita qualquer recomendação ao orgão competente para corrigir o acto ou a situação irregulares, fica esse orgão obrigado a, no prazo de 60 dias, comunicar-lhe a posição que assume; o não acatamento da recomendação tem sempre de ser fundamentado.
Isto em linhas gerais.
P. No tocante ás inspecções ou inquéritos tem sido eles frequentes ? E com que resultados ?
R. Pretendi reactivar essa vertente da actividade do Provedor, e desde Junho de 1990 que tal tem acontecido, até por considerar que se trata de uma das minhas funções mais úteis e insubstituiveis. Só que os meios humanos e logísticos são escassos e a Provedoria vive afogada numa certa rotina de milhares de processos, muito deles iniciados há vários anos. É urgente manter a dinâmica que tem vindo a ser criada, complementada por uma orgãnica mais flexível e eficaz.
Repare que os dois primeiros grandes inquéritos, levados a efeito em 1985 e 1986, tiveram o meu decidido empenhamento e apoio, então como Ministro da Justiça. Foram os inquéritos à PSP e ao estabelecimento prisional de Vale de Judeus. No 1º caso, o inquérito acabou por ser decidido e efectuado pelo Governo, através de uma comissão presidida por um magistrado por mim designado (embora eu próprio nada tivesse a ver directamente com a PSP) e integrada por três vogais: um designado pelo Ministro da Administração Interna, outro pelo Provedor e outro pelo Comando-Geral da PSP. Todo o apoio logístico e administrativo de que a Comissão careceu foi prestado por esse Comando-Geral. Tenho a consciência que pus toda a vontade política no funcionamento da Comissão, vontade essa que acabou por se propagar ao Governo. Isso mesmo foi reconhecido pelo meu ilustre antecessor no seu Relatório anual de 1986, que está publicado.
No mesmo Relatório registou ainda o Dr. Almeida Ribeiro que no caso de Vale de Judeus o intencionalizado inquérito teve “alguma resistência por parte do então director-geral dos Serviços prisionais, e da própria Associação Sindical dos Guardas Prisionais”. Mas assinalou também: “o Provedor de Justiça contou desde o início com a compreensão e o empenhamento do então Ministro da Justiça, Dr. Mário Raposo”.
A cooperação dos serviços e dos Ministérios é hoje obrigatória. No entanto manda a verdade dizer que nem sempre existe a disponibilidade activa e estimulante com que então eu mesmo encarei aqueles dois inquéritos. A tendência – aliás compreensível – é a de as entidades inspeccionadas ou inquiridas se sentirem parte contrária em relação ao Provedor, enquanto que eu sempre me coloquei do mesmo lado, nesses e noutros casos.
P. É ou não um social-democrata ? Mantém a sua filiação partidária ? E como tem reagido o PSD face aos seus despachos mais polémicos ? Não é de esquecer que foi ministro em diversos governos do PSD, deputado desde 1979 e presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos e Garantias entre finais de 1987 a Junho de 1990.
R. Se ser social-democrata é acreditar no valor da pessoa humana socialmente integrada, e lutar pelas liberdades públicas e pela incessante procura da Justiça Social, através da realização tanto quanto possível plena dos direitos sociais, económicos e culturais; se ser social-democrata é fazer com que o futuro se defina pelos horizontes da esperança e da mudança, contribuindo para o gradual esbatimento das indevidas assimetrias sociais, numa mais equilibrada distribuição da riqueza – é evidente que sou e sempre serei social-democrata.
Em relação ao PSD, no qual ingressei em fins de 1978 (logo depois do governo Nobre da Costa) por convite e por proposta pessoais de Francisco Sá Carneiro, tenho perante ele, enquanto Provedor de Justiça, a mesmissima posição que assumo perante qualquer outro partido democrático, e nisso não faço hoje qualquer distinção entre qualquer dos que estão representados na Assembleia da República.
Recordo, aliás, que na minha eleição para Provedor tive a solidariedade e a confiança de todos eles. Certo é que o PCP se absteve “formalmente” mas não por mim; fê-lo somente por não ter sido previamente ouvido pelos dois “cúmplices” na candidatura (preparada à minha inteira revelia) : o PS e o PSD. Entretanto, dada a “histórica” votação obtida, estou em supor que, dessa vez, sob o resguardo do sigilo do voto, a posição “oficial” do PCP não terá sido seguida por alguns dos seus Deputados…
Quanto a reacções por parte do PSD – do qual estou temporariamente desvinculado – nunca, nem sequer ao de leve, me chegou qualquer reparo quanto à actuação por completo descomprometida que decidi, muito naturalmente, desenvolver. De resto, se tal tivesse acontecido, com violação da “regra de ouro” da minha independência, o “remédio” imediato estaria à vista. Como disse Cervantes, a honra é património da alma e a alma somente pertence a Deus.
(*) Entrevista ao Jornal de Noticias em 27.8.1991.