Relatório 2023: Falhas na execução da lei e problemas gerados pela transição digital comprometem o desempenho da Administração Pública e levam a desconfiança dos cidadãos em relação às instituições do Estado

Prosseguindo a orientação inaugurada no ano anterior, o Relatório de atividades do Provedor de Justiça de 2023, hoje entregue à Assembleia da República, concede particular destaque a problemas que, de forma transversal e reiterada, comprometem uma boa prestação de serviços públicos a um amplo conjunto de cidadãos.

Após o relevo dado, no relatório anterior, à morosidade, à falta de articulação entre serviços e à deficiente comunicação, o Relatório de 2023 identifica outros dois grandes problemas de mau funcionamento da Administração, que podem gerar desconfiança por parte dos cidadãos em relação às instituições do Estado: as falhas na execução da lei e os riscos da transição digital, à qual são dirigidos vários alertas.

Falhas na execução da lei. A atividade quotidiana da Provedoria de Justiça revela — e o acervo reunido ao longo dos anos comprova-o — que muitas vezes não é a legislação, ou a falta dela, que origina as queixas dos cidadãos, mas antes a omissão, total ou parcial, da sua execução ou aplicação.

Os exemplos selecionados respeitam tanto a medidas estruturais como a medidas conjunturais; vão da segurança social à fiscalidade; abrangem quer grupos vulneráveis quer a generalidade dos cidadãos.

Por exemplo, no domínio da acessibilidade de pessoas com mobilidade condicionada a edifícios e espaços públicos, o compromisso de princípio com a inclusão e a promoção dos direitos humanos não tem sido acompanhado de uma satisfatória execução.

Atrasos consideráveis observam-se ainda no objetivo de convergência dos regimes de segurança social (anunciada em 2007) e na concretização da reforma do regime de vínculos, carreiras e remunerações (iniciada em 2008).

Alertas à transição digital. Sem prejuízo das suas inegáveis vantagens, a potencialidade danosa da marcha da digitalização, principalmente em relação às pessoas mais vulneráveis, está claramente identificada.

No Relatório enunciam-se alguns alertas específicos, identificados com base na análise das queixas dos cidadãos: a necessidade de sistemas digitais mais flexíveis e mais atentos aos cidadãos, e o imperativo de garantir alternativas ao acesso digital e de corresponder às expectativas geradas pela digitalização.

Ao longo dos anos e nos mais variados domínios, são recorrentes as queixas de utilizadores de plataformas informáticas que ficaram na errada convicção de os seus pedidos, declarações ou candidaturas terem sido entregues sem que tal tenha sucedido, apenas demasiado tarde se apercebendo deste facto.

As soluções informáticas recorrem frequentemente a mecanismos rígidos e a automatismos que levam à impossibilidade de consideração de especificidades relevantes do caso concreto e mesmo a erros. O sistema informático do Instituto da Segurança Social, por exemplo, procede, de forma automática, ao cálculo de juros de mora e integra o respetivo valor no montante devido pelos contribuintes, mesmo quando o atraso nas contribuições a pagar é da responsabilidade da Segurança Social.

Por último, assinala-se que é fonte de muito particular preocupação a existência de serviços ou funcionalidades cujo acesso se faz exclusivamente online. É o que sucede, por exemplo, em matéria de apoio à habitação, no âmbito de serviços públicos essenciais ou ainda em processos de desalfandegamento de encomendas.

Temas das queixas instruídas em 2023

Em 11 de abril de 2022 entrou em funcionamento na Provedoria de Justiça um novo modelo de tratamento das queixas, com uma unidade dedicada à apreciação preliminar das solicitações dirigidas ao Provedor de Justiça que, a montante, ou seja, antes da abertura de um procedimento de instrução da queixa propriamente dito, procede à respetiva análise e triagem.

Sempre que possível, esta unidade resolve imediatamente o problema do queixoso ou presta-lhe informações; se necessário, requer elementos adicionais ao cidadão por forma a que a sua queixa possa ser apreciada; se adequado, reencaminha-o para outras entidades mais vocacionadas para resolver a questão. Esta alteração procedimental tem vindo a alcançar os resultados pretendidos, tendo permitido, por um lado, uma resposta mais rápida e precisa aos cidadãos, e, por outro, a deteção precoce de problemas com potencial sistémico, ou seja, com probabilidade de afetarem um número significativo de pessoas.

Ao longo de 2023, em que chegaram à Provedoria de Justiça 10 641 queixas entre 15 711 solicitações, o funcionamento desta unidade dispensou a abertura de um número muito significativo de procedimentos e permitiu a canalização de recursos para o estudo e a análise de disfunções várias numa perspetiva mais estrutural e abrangente. 

Esta mudança traduziu-se na redução do número de procedimentos de queixa instruídos (2854) e, em sentido inverso, na elaboração de um maior número de relatórios temáticos: sobre as Medidas de Mitigação da Inflação (maio), em torno da Monitorização da Atividade e do Processo de Extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (julho), tendo ainda sido realizado o trabalho de terreno — 26 visitas e 266 entrevistas a cidadãos — que esteve na base da elaboração do Relatório sobre o Atendimento nos Serviços Públicos.

Relativamente aos temas dos procedimentos de queixa instruídos, em continuidade com o passado as entidades do universo da Segurança Social foram as mais visadas, sendo, por outro lado, de assinalar o crescimento relativo das queixas de estrangeiros, fenómeno que tenderá a acentuar-se significativamente em 2024.

O Relatório do Provedor de Justiça de 2023 apresenta ainda, quanto à atividade de apreciação de queixas, um capítulo dedicado aos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dirigidos ao Tribunal Constitucional. Uma vez que, na arquitetura geral do sistema de fiscalização da constitucionalidade, os cidadãos não têm acesso direto ao Tribunal Constitucional, o Provedor tem desde sempre dedicado uma especial atenção às questões trazidas pelos cidadãos a solicitar o exercício desta competência que lhe está constitucionalmente atribuída e que importa preservar, também no quadro institucional.

Por último, apresenta-se um resumo da atividade nacional e internacional do Provedor de Justiça enquanto Instituição Nacional de Direitos Humanos, estatuto que foi renovado após o exigente processo de reacreditação, iniciado em 2023, com vista a aferir e certificar o grau de conformidade com os Princípios de Paris das Nações Unidas.

O Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP), departamento da Provedoria de Justiça dedicado à prevenção de tratamentos abusivos sobre pessoas privadas da liberdade, e cuja atividade é, como habitualmente, objeto de Relatório próprio, assinalou em 2023 uma década de existência.

Foi nesse ano imprimida uma nova dinâmica à participação em ações de formação dirigidas àqueles que diariamente contactam com as pessoas privadas da liberdade, ou se preparam para desenvolver uma atividade profissional nessa área.

Com o propósito de reforçar a transparência da atuação preventiva, tornaram-se públicas as principais conclusões alcançadas após cada visita a local de detenção, com a indicação dos respetivos fatores de risco e aspetos positivos.

Em 2023, foram efetuadas 44 visitas de monitorização e, como usualmente, os locais foram escolhidos tendo em conta os fatores de risco sinalizados em visitas anteriores, as notícias difundidas pela comunicação social bem como o teor das queixas apresentadas ao Provedor de Justiça.

No que respeita aos centros de instalação temporária (CIT) e espaços equiparados (EECIT), foi prestada especial atenção à transferência das competências em matéria de controlo de fronteiras do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para as forças de segurança.

O MNP publicou ainda um Relatório Temático sobre condições de detenção nas esquadras da PSP.

  • Para ler o Relatório Provedor de Justiça 2023, clique aqui.
  • Para ler o Relatório MNP 2023, clique aqui.

Maria Lúcia Amaral é a Provedora de Justiça desde novembro de 2017.
(Gerardo Santos / Global Imagens)

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​​Atualização.  A Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, foi recebida em audição pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias no dia 10 de setembro, para a apresentação do Relatório Anual de Atividades relativo ao ano de 2023, incluindo o Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção. Para ouvir a audição, clique aqui.

2024-07-12